Este boletim surgiu sob o signo da Travessia. De inspiração rosiana mesmo, uma travessia pelo percurso da existência, pela grave vida daqueles que nascem sob o signo colonialista e que carregam consigo as contradições históricas de seu momento presente. Se nós, Projeto 3×22, estamos a pensar o Brasil, entrecruzando as temporalidades nas quais o questionamento “o que é ser brasileiro?” foi projetado, não poderíamos deixar de olhar para o trânsito entre as territorialidades que foram tecidas, umas às outras, pela língua portuguesa. É sobre esse brasileiro, ou sobre essa brasilidade, que vamos falar. Ela, que não ficou apenas aqui, neste continente ocidental, mas atravessou o Atlântico e plantou sementes históricas em Angola, Moçambique, Cabo-Verde e Portugal.
Cada uma das três seções do nosso Boletim é organizada a partir de uma temporalidade específica. Partimos do questionamento o papel do Brasil enquanto território do Império Português no início do século XIX (ou seja, antes da Independência, nosso primeiro 22), no imaginário de dominação de Portugal, e os impactos da ruptura que foi a declaração de independência. Quem nos apresenta esse tema é a professora Patrícia Marcos, da UCLA-San Diego. Depois, Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, pela análise da professora Fernanda R. Miranda, da UFBA, aborda o panorama contraditório da diáspora e escravização negra durante os 1800. Adiante, a professora Fabiana Carelli, da FFLCH-USP, reflete sobre a relação entre cinema e medicina, demonstrando como as películas médicas produzidas por Portugal buscavam legitimar sua presença em África. Em seguida, o poeta Pedro Moreira analisa dois poemas oitocentistas, comparando a identificação com a pátria pessoal através do confronto com o diferente; estamos a falar dos poemas de Gonçalves Dias e Maia Ferreira. Terminando a seção, Elisa Lucinda, a atriz, poeta e ativista negra, nos concede uma entrevista na qual aborda não apenas seu próprio diálogo com as literaturas de língua portuguesa, como também as estruturas que mantém o Brasil como um país colonialmente edificado.
Nossa segunda seção pensa o 1922 e o espírito da época modernista. Partimos analisando o lusotropicalismo de Gilberto Freyre através do texto do professor Júlio Machado, da UFF. Depois, temos prazer em relançar o texto Ecos do Modernismo Brasileiro entre Africanos, da professora Maria Aparecida Santilli. Esse texto foi um dos primeiros a pensar as relações entre as literaturas africanas de língua portuguesa e o Brasil. Com base nesses estudos, o texto da professora Vima Lia, da FFLCH-USP, apresenta o ensino de literaturas com base na Lei 11.645/08, que modifica a 10.639/03, que institui o ensino das literaturas africanas de língua portuguesa e afro-brasileiras nas universidades e escolas públicas do país. Em seguida, temos a entrevista com Rita Chaves, professora aposentada de Literaturas Africanas da FFLCH-USP, que além de realizar um testemunho do seu percurso enquanto especialista em literatura angolana, sendo uma das primeiras pesquisadoras dessa literatura nacional no Brasil, esclarece as relações entre a produção literária de Guimarães Rosa, Luandino Vieira e Mia Couto. Não se pode esquecer dos seus desejos para 2022, dos quais Elisa Lucinda também compartilha.
Chegamos então à última seção de artigos que investigam as relações dentro do mundo lusófono, com especial atenção ao terceiro 22, o nosso presente. Começamos a analisar, portanto, os efeitos e contradições internas vividos por Portugal assim que sua dominação política se extingue nos países africanos, através do texto de Vanda Araújo, aluna de História da FFLCH-USP. Luca Fazzini, com um texto sobre as cidades porosas e pelo olhar de dois escritores angolanos de intrínseca relação com a cultura brasileira, José Eduardo Agualusa e Ondjaki, apresenta como Rio de Janeiro e Luanda se relacionam, manifestando persistências coloniais, dentre elas o racismo. A seguir, Moçambique é analisado pelo olhar de dois escritores. Stela Saes, doutoranda de Letras na FFLCH-USP, comenta o olhar feminino de Paulina Chiziane sobre o percurso histórico de seu país; e Franklin Cordeiro Pontes, estudante de Letras na mesma universidade, aborda, em duas obras de Ungulani Ba Ka Khosa, a discussão do autor sobre os vários discursos que compõe o horizonte ideológico de seu país, correlacionando essa diversidade discursiva com a memória e a ocupação do território. Finalizamos nosso boletim com duas entrevistas com os escritores Patricia Lino e José Eduardo Agualusa. Patrícia nos fala sobre seu livro, “Kit de sobrevivência do descobridor português no mundo anticolonial”, que foi uma das obras semifinalistas do prêmio Oceanos em 2021, no qual o humor ácido da sátira desvela os pressupostos coloniais que ainda existem na mentalidade portuguesa (e não só). Já Agualusa conversa conosco sobre sua obra, o papel da literatura e seus desejos para o Brasil em 2022. Vale ressaltar que, por estarmos em contexto pandêmico, todas as entrevistas presentes do boletim foram realizadas através das redes sociais, sejam por gravação de áudio ou de forma escrita.
Através das edições de nossos boletins, o Projeto 3×22 reflete sobre o Brasil, partindo de temas estruturais que questionam as noções políticas e cristalizadas que atribuem aos brasileiros. A nossa perspectiva, de entrecruzamento de temporalidades, permite que encontremos as continuidades, superações e problemáticas que ainda fazem parte do cotidiano da nação. Portanto, não poderíamos deixar de refletir sobre o diálogo existente entre os países em que o colonialismo foi responsável por aproximar estruturas societárias tão diversas, formando novas culturas sob o signo da troca. Troca imposta. Troca colonial. Se as nacionalidades possuem algum projeto para si, talvez começar por analisar os pressupostos de sua trajetória seja um bom início. Que a travessia seja outra. Que essa travessia seja nossa. Boa leitura.